7 de Novembro: Duração do purgatório



DURAÇÃO DO PURGATÓRIO
 Quanto tempo?
Quanto tempo deve ficar uma alma no purgató­rio? É uma pergunta impossível de responder. Não temos e não podemos ter nenhum argumento ou de­finição da Igreja e da teologia que nos possa garantir uma resposta certa a esta pergunta.
É um mistério e depende muito do modo de encaramos a questão. Bem sabemos que na eternidade não há mais tempo. Tempus jam non erit amplius. Como julgar o tempo em relação ã eternidade? E demais, o sofrimento faz maior e mais difícil de passar o tempo entre nós. Quantas vezes um minuto nos custa mais a passar que longas horas? Pois o sofrimento horrível e intenso das pobres almas faz com que os minutos lhes sejam anos e até séculos. Aqui, havemos de fazer como todos os autores que tratam do purgatório: recorrer às revelações particulares. Elas nos esclarecem, e algumas bem provadas e até sujeitas a processos canônicos rigorosos, como as dos Santos canonizados, nos dão uma garantia de que não se tratavam de ilusões ou fantasias mórbidas. Quanto à duração do purgatório, de uma coisa pode­mos ter certeza, diz-nos Santo Agostinho: é que as penas expiatórias não irão além do último Juízo no fim do mundo[1].
No século XVI, um sábio teólogo dominicano, Domingos Soto, afirmou erradamente que a pena do purgatório não poderia durar mais de dez anos. É uma opinião sem fundamento e geralmente rejeitada. A Igreja supõe muitas vezes que as penas do purgatório sejam longas, quando permite fundações de Missas e sufrágios por longos anos, e celebram aniversários de vinte, trinta, cinquenta e mais anos. Permite fundações perpétuas de Missas. Ninguém sabe, diz Cesário, quanto tempo, quantos anos deverá ficar no purgatório uma alma. É para nós, diz São Roberto Belarmino, coisa muito incerta. Poderíamos considerar duas espécies de duração do purgatório — uma positiva e que corresponde à medida do tempo tal como o contamos neste mundo, e outra fictícia ou imaginária, a que pensam as almas pelo sofrimen­to que as faz perder toda noção do tempo. Daí o ver­mos em revelações particulares pobres almas que estavam apenas algumas horas no purgatório, queixarem-se de anos e até séculos de abandono naquelas chamas.
Eis alguns exemplos de duração positiva segun­do revelações particulares: Conta-se na vida de Santo Tomás de Aquino que o mestre seu sucessor na cátedra de teologia de Paris, depois de morto apare­ceu e disse que havia ficado quinze dias no purgatório para expiar a negligência em executar o testa­mento de um Bispo. São Vicente Ferrer assegura que há almas que ficaram no purgatório um ano inteiro por um pecado venial. Segundo o testemunho de Santa Francisca de Pampeluna, a maioria das almas do purgatório lá sofrem de trinta a quarenta anos. E muitos outros exemplos poderia citar de au­tores muito graves. Muitos Santos viram almas des­tinadas a sofrer no purgatório até o fim do mundo. Algumas revelações particulares, observa o Padre Faber, nos levam a crer que a duração do purgatório vai aumentando sempre mais à medida que a humanidade avança no tempo. Há tanta falta de penitên­cia hoje, tanto luxo e mundanismo!

Longo e breve purgatório
Segundo as revelações particulares, há almas destinadas a um longo sofrimento nas chamas do pur­gatório e outras passam brevemente pela expiação. Citemos exemplos:
Santa Verônica Juliani fala de uma Irmã de seu convento que havia se oposto à reforma do mosteiro e deveria ficar no purgatório tantos anos quantos passou neste mundo. À Santa Margarida de Cortona, a grande penitente franciscana, disse Nosso Senhor: “Alegra-te, minha filha, tua mãe está livre do pur­gatório, onde ficou ela dez anos”. Como a Santa re­zasse por três defuntos que ela julgava estivessem salvos, revelou Jesus: “Estão salvos por tuas ora­ções e se livraram do inferno, mas ficarão vinte anos nas chamas do purgatório”.
Santa Lutgarda fez penitências por Simão Aba­de, cisterciense muito austero e duro demais para com seus súditos. Deveria ficar no purgatório quarenta anos. À Madre Francisca da Mãe de Deus — (1615- 1671) — Nosso Senhor mostrou um dia quatro padres que estavam há mais de cinquenta anos no pur­gatório porque não administraram bem e com res­peito e piedade os Sacramentos.
Santa Lutgarda viu no purgatório um dos Papas mais piedosos e ilustres da Igreja, Inocêncio III. Este Papa apareceu à Santa dizendo que por algumas faltas no governo da Igreja, deveria permanecer no pur­gatório até o fim do mundo. São Roberto Belarmino examinou com muito cuidado as circunstâncias e a autenticidade desta visão, e fala dela nas suas obras. Todavia, si há longas expiações, outras pela misericórdia divina são muito breves. Talvez tenham sido mais intensas. Santa Teresa, na sua Vida ou autobiografia, fala-nos numa Carmelita fervorosa que só passou dois dias no purgatório. Uma outra, muito paciente na doença, ficou apenas quatro horas na expiação. Um Irmão coadjutor da Companhia de Jesus morreu à noite e ficou no purgatório apenas até à Missa do dia seguinte[2].
Santa Margarida Maria Alacoque, a vidente do Sagrado Coração de Jesus, viu o seu Diretor espiritual, o Santo Padre La Colombière, passar algumas horas nas chamas expiatórias por ligeiras faltas. E se trata de um Santo!
O Santo Cura d’Ars, segundo Mons. Trochu[3] nos diz, teve muitas vezes intuições admiráveis do tempo que muitas almas deveriam ficar no purgatório. Perguntaram ao Santo si uma doente se havia de curar. Quem perguntou ignorava que a enferma tivesse morrido. O Santo, que o sabia por inspiração do céu, respondeu logo: “Ela já recebeu a recompensa”.
As almas simples e humildes, e sobretudo as que muito sofreram neste mundo com paciência e se confortaram perfeitamente com a vontade de Deus, podem ter um purgatório muitíssimo abreviado, às vezes de horas. É o que nos dizem inúmeras revela­ções particulares. Até Santos passaram ligeiramente pelo purgatório. Tal se conta de São Severino, Arcebispo de Colônia. Era um grande servo de Deus, admirável pelas suas virtudes e até pelos milagres que fez. Depois da morte, apareceu a um Cônego da sua catedral para lhe pedir orações. Estava no pur­gatório por instantes, por ter rezado com alguma precipitação.

Conclusões
Que havemos de concluir, quando meditamos na duração do purgatório? Primeiramente, procurarmos ter mais zelo pela causa das almas sofredoras que tanto padecem pelo nosso esquecimento. Somos muito fáceis em canonizar logo os mortos e comodamente já não rezamos mais por eles sob a desculpa de que “já estão no céu”. Ai! Não sabemos o que é a Justiça de Deus e até os mais santos têm contas severas a dar ao Senhor depois desta vida.
São Francisco de Sales tinha muito medo destas canonizações rápidas dos admiradores. Estas boas almas, dizia ele, com seus elogios, imaginando que depois da minha morte fui logo direito para o céu me farão sofrer no purgatório. Eis o que me aproveitará a boa reputação de santo...
Santa Teresa escreve no Prefácio do Livros das Fundações: “Pelo amor de Deus, eu peço a cada pes­soa que ler este meu livro, uma Ave Maria, a fim de que me ajude a sair do purgatório e apresse a hora em que hei de gozar a vista de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Assim falaram Santos hoje canonizados e cuja morte por tantos prodígios nos deixaram a certeza de que foram diretamente para o céu.
Por que termos e presunção de terem ido diretamente para o céu nossos entes queridos, embora vir­tuosos, e deixarmos de orar por eles? O piedoso e admirável fundador das Conferências de São Vicen­te de Paulo, Frederico Ozanam, deixou no seu testa­mento estas linhas: “Não vos deixeis levar por aqueles que vos disserem: ele está no céu! Rezai sempre, por aquele que muito vos ama, mas que muito pecou. Com o auxílio de vossas orações eu deixarei a terra com menos temor”.
Santo Agostinho pede orações por alma de Mônica, sua mãe, e de Patrício, seu pai, a todos os lei­tores das suas Confissões. O ilustrado e piedoso Pa­dre Perreyve deixa esta recomendação: “Peço aos meus amigos que rezem por mim muito tempo depois da minha morte. Que eles não digam como se costuma dizer muitas vezes e com muita pressa: está no céu! Que rezem muito por mim, sim, eu lhes peço encarecidamente”.
Não canonizemos tão depressa os nossos mortos e mesmo aqueles que vimos ter a morte dos justos; rezemos muito por eles. Nunca nos descuidemos do sufrágio dos mortos, porque já fizemos muito durante algum tempo, já mandamos celebrar umas poucas Missas e rezamos umas tantas orações e os julgamos já no paraíso com isto. Ignoramos o rigor da Justiça de Deus. E demais, si nossas Santas Missas mandadas celebrar, nossas orações e penitências não servirem mais para as almas pelas quais rezamos, não irão ajudar tantas almas sofredoras?
Outra conclusão que havemos de tirar de nossas reflexões sobre a duração das penas do purgatório é a de cuidarmos mais da nossa perfeição e não sermos tão presunçosos julgando-nos capazes de entrar logo no céu. Cuidado com esta presunção, que nos pode acarretar um longo e doloroso purgatório!
Exemplo
Minutos que parecem séculos
São tão dolorosas as penas do purgatório, que lá os minutos parecem séculos. Há nas revelações pa­ticulares tantos fatos impressionantes que comprovam isto. E demais, que é a eternidade? Já não existe o tempo. Os minutos além desta vida são séculos para os que padecem naquelas chamas expiatórias.
Conta Santo Antonino que um enfermo, vítima de dores atrozes, pedia sempre a morte. Julgava os seus sofrimentos terríveis e acima de toda força humana. Um Anjo lhe apareceu e disse: Deus me mandou para te dizer que podes escolher um ano de do­res na terra, ou um só dia no purgatório. O enfermo escolheu um dia no purgatório. Foi para o purgatório. O Anjo o foi consolar e ouviu este gemido de dor: “Anjo ingrato, dissestes que ficaria no purga­tório um só dia e sinto que estou já aqui há longos vinte anos pelo menos... Meu Deus, como sofro!”. O Anjo responde: Como te enganas! Teu corpo está ainda na terra sem ter baixado à sepultura. A miseri­córdia de Deus te concede ainda voltar para um ano de doença na terra. Queres?
— Mil vezes, sofrimentos maiores ainda na minha doença.
Ressuscitou e durante um ano sofreu horrorosa­mente, mas com uma paciência heroica até à morte.
Este fato foi contado por Santo Antonino de Florença, o prodigioso taumaturgo.
Deu-se também um impressionante fato com São Paulo da Cruz. O Santo estava em oração na cela, quando sentiu que lhe batiam com muita força na porta. Não quis atender, pensando ser o diabo que às vezes lhe perturbava a oração: — Em nome de Deus retira-te, Satanás! Grita São Paulo, mas o batido continua: — Que queres de mim? Pergunta.
— Quanto sofro! Quanto sofro, meu Deus! Sou a alma daquele padre falecido. Há tanto tempo estou num oceano de fogo, há quanto tempo!... Parecem mil anos!
São Paulo da Cruz o reconheceu logo e respondeu, admirado: “O que me diz?!... Meu padre, faz um quarto de hora apenas que faleceu e já me fala em mil anos!
O pobre sacerdote do purgatório pediu sufrágios e orações, e desapareceu. São Paulo da Cruz, comovido e banhado em lágrimas, tomou a disciplina e se bateu, até banhar-se em sangue. No dia seguinte, logo pela manhã, celebrou pelo defunto e viu-o entrar triunfante no céu, na hora da Comunhão.

[1] De civitate Dei — Lib. XXI, caps. XIII e XVI.
[2] M. Jugie — Le Purgatoire.
[3] Intuitions du Curé d’Ars.

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Fonte:
Tenhamos Compaixão das Pobres Almas!
30 meditações e exemplos sobre o Purgatório e as Almas, por Monsenhor Ascânio Brandão

Livro de 1948 - 243 pags, Casa da U.P.C. Pouso Alegre

6 de Novembro



O SOFRIMENTO DO PURGATÓRIO
Sofrimento terrível
     Exclamava Jó, o profeta, e com ele repetem as santas almas do purgatório: Miseremini mei! Saltem vos amici mei, quia manus Domini tetigit me! — Tende compaixão de mim! Tende compaixão de mim! Ao menos vós que sois meus amigos, porque a mão de Deus me feriu!
  Sim, a Justiça de Deus fere as benditas almas para as purificar e santificar e torná-las dignas do esplendor da glória celeste e da visão de Deus. E que sofrimentos incríveis padecem elas! Que fogo devorador! Fogo que acrisola o ouro e prepara os eleitos para a visão divina, a glória eterna!
  Sofrer é a condição das almas do purgatório. Pertencem elas à Igreja padecente. Desde que o pe­cado entrou no mundo, só pela cruz Jesus nos salvou, e só pelo fogo do sofrimento chegamos ao céu. O purgatório foi chamado o oitavo sacramento do fogo. Sacramento da misericórdia na outra vida.
  As almas do purgatório, diz o Pe. Faber, estão num estado de sofrimento que a nada se pode com­parar e nem se pode fazer uma idéia.
  Segundo Santo Tomás e Santo Agostinho, quan­to ao sofrimento, as penas do purgatório são análogas às do inferno.
Santa Catarina de Genova, após uma visão do purgatório, exclama:   Que coisa terrível é o purgatório! Confesso que nada posso dizer e nem conceber que se aproxime sequer da realidade. Vejo que as penas que lá padecem as almas são tão dolorosas como as penas do inferno[1].
  O purgatório tem penas, diz a autoridade de Santo Tomás de Aquino, penas que ultrapassam a todos os sofrimentos deste mundo[2].
É o mais horroroso de todos os martírios.
E como não hão de clamar as benditas almas das profundezas do abismo das chamas expiadoras: Mise­remini mei! Miseremini mei! — Tende compaixão de mim!
  Segundo os teólogos e autores abalizados, as almas do purgatório sofrem tanto que não há na linguagem humana o que possa traduzir os tormentos terríveis que padecem. Santa Catarina de Genova, chamada a teóloga do purgatório, a quem Nosso Senhor revelou o sofrimento da expiação dos justos, diz ser impossível traduzir na linguagem humana e o nosso entendimento não pode conceber tal sofrimento. É preciso uma graça e uma iluminação especial de Deus para compreender estas coisas, dizia a Santa.
“É pior que todos os martírios”, disse o Padre Faber.
“As penas do purgatório são passageiras, não são eternas, diz São Gregório Magno, mas creio que são mais terríveis e insuportáveis que todos os males desta vida”.
  Domingos Soto escreveu: “Se o homem tivesse de suportar os tormentos do purgatório, a dor o mataria num instante. A alma imortal por sua natureza torna-se mais forte pela separação do corpo orgânico e por isto tem capacidade para tanto sofrimento”.
  Há dois sofrimentos, duas penas principais no purgatório: a pena do dano ou separação de Deus, e a pena do sentido, tormento do fogo.

A pena do dano
Que é a pena do dano que padecem as almas do purgatório?
  É a que sofrem por se verem privadas da visão de Deus no céu. A visão intuitiva que consiste na fe­licidade de ver a Deus como é, segundo a palavra de São Paulo: videbimus eum sicuti est. Não ver a Deus, cuja beleza soberana e cuja bondade elas compreendem agora de modo tão claro e sentem ser Ele o Soberano Bem, único desejável e a suprema Beleza, única que pode encantar uma alma!
  Pois separada do Soberano Bem, a alma sente um horrível martírio mais insuportável do que todos os tormentos que possa padecer e até do fogo do purgatório em que se acha.
  Santo Tomás de Aquino tratando da pena do dano, diz ser mais insuportável, maior e mais terrível que a pena do sentido. Não ver a Deus, não possuir este Deus, único encanto da pobre alma que já não tem mais nada que a possa seduzir ou enganar, e deixá-la esquecida da Suprema Felicidade! Aqui neste mundo a tibieza, o apego à terra e nossa fraqueza, fazem com que muitas vezes nos esqueçamos de Deus e vivamos sem sentir e nem imaginar sequer o que seja estar separado de Deus. Há quem não possa sequer imaginar o que possa haver de sofrimento nesta ausência de Deus que é a pena do dano. Porém, ai! Quando a alma separada deste corpo mortal sentir a necessidade de voar para Deus, de possuir a Deus, atraída pelo Bem Infinito, sedenta da posse de Deus e da Eternidade, então há de sentir, há de perceber quanto é doloroso e horrível estar um minuto que seja separada do Bem Soberano, separada de Deus! É a horrível pena do dano.
“Sentir um ímpeto de ir para Deus sem o poder satisfazer, isto, diz Santa Catarina de Genova, é o maior sofrimento que se possa imaginar, é propriamente o purgatório. Este estado é um estado de mor­te, uma angústia inenarrável”[3].

A Liturgia da Igreja chama-o com razão de mor­te: Libera eas a morte...
  Sabeis o que é o suplício de quem está sufocado e não pode respirar? Que horror! A alma está como sufocada, não pode respirar o que é a vida e razão de ser, Deus, o Infinito, o Eterno, o Paraíso! A pobre alma no purgatório se precipita no tormento e no fogo, quer se purificar, suspira pelo Bem Eterno, so­fre e sofre, mas deseja mais sofrimento para que che­gue logo a hora de contemplar o seu Deus, a Eterna Beleza que o atormenta naquelas chamas da expiação!
  Tem-se visto neste mundo, escreveu Mons. Bougaud,[4] afeições tão profundas, almas que se ama­vam e não puderam suportar a separação e morreram de dor. Que não será no purgatório? Podemos dizer que si Deus por um milagre da sua Onipotência não sustentasse as almas do purgatório, elas ficariam ani­quiladas de dor longe daquele Deus que amam apai­xonadamente. Si compreendêssemos melhor como é horrível a separação de Deus! Si como os Santos experimentássemos as provações da vida mística, o tormento de se sentir ausente de Deus, saberíamos ava­liar o que é e o que faz sofrer esta terrível pena do dano!

O fogo do purgatório
  Além do sofrimento da pena do dano ou da privação da vista de Deus, da posse da visão beatífica, a Igreja nada definiu sobre a natureza das outras pe­nas do purgatório. O Concilio de Florença diz que as almas são privadas temporariamente da visão beatí­fica e são purificadas de toda mancha por penas expiadoras e purificadoras.    Dentre estas penas está a dos sentidos, e comumente concordam quase todos os autores, se trata da pena do fogo. Há fogo no pur­gatório e um fogo terrível criado pela Justiça Divina para purificação dos justos, para acrisolar o ouro das almas. Os teólogos em geral e em sentença comum, afirmam que se trata de um fogo verdadeiro e não metafórico. Fogo que queima mil vezes mais que o fogo da terra, que comparado a ele não é mais do que o de uma pintura para a realidade. Os Santos Padres e os Teólogos escolásticos admitem o fogo real. Como pode um fogo material atormentar a alma que é espiritual? É um mistério. Todavia, não temos um outro mistério que é o da alma espiritual agir sobre o cor­po material? Por que a Justiça de Deus não poderia fazer com que o fogo material agisse sobre a alma espiritual? Diz claramente Santo Tomás de Aquino: “No purgatório há dois sofrimentos: a pena do dano, que consiste no retardamento da visão de Deus, e a pena dos sentidos, castigo proveniente de um fogo material”[5].
  A questão do fogo do purgatório foi muito discutida no século IV. Santo Agostinho conclui pela existência do fogo material. No século XIII Santo Tomás segue a opinião de Santo Agostinho. A pena do fogo! Como é terrível! Não é menor em inten­sidade do que o fogo do inferno. Este fogo, diz São Gregório Magno, instrumento da Divina Justiça, faz sofrer mais tormentos e muito mais cruéis do que tudo quanto Sofreram os mártires nos suplícios inimagináveis.
  As maiores dores são as que afetam a alma, comenta Santo Tomás. Toda a sensibilidade do corpo vem da alma. O que não será uma dor que vem ferir diretamente a alma? Pois o fogo material, fogo misterioso, dotado de um poder extraordinário, pela Justiça Divina, atinge diretamente a alma e a fere dolorosamente. Que fogo, meu Deus! Que castigo tremendo! Como sofrem as pobres almas nesta forna­lha abrasadora! Tantas revelações particulares nos mostram o fogo do purgatório, fogo real, fogo terrível. Verdadeiro fogo.
  Porque discutir quando a unanimidade quase dos Doutores e Santos Padres e tantos teólogos seguros nos falam com uma eloquência tão impressionante da realidade do fogo do purgatório? São Boaventura escreve: “O fogo do purgatório é um fogo material que atormenta a alma dos justos que não fizeram penitência neste mundo. Fogo! Esta palavra faz tre­mer. Já exclamava Isaias: quem dentre vós poderá habitar em meio de um fogo devorador? (Is 33,14) Façamos penitência agora, aliviemos o fogo de nosso purgatório. É terrível o fogo que nos espera!

Exemplo
Uma aparição
Não podemos saber neste mundo com certeza e nem é necessário saber como é e o que é o fogo do purgatório. O que sabemos é que a Sagrada Escritura muitas vezes nos fala do fogo para nos dar a entender que seremos castigados e expiaremos nossas faltas nos rigores da Divina Justiça para nos purificarmos e sermos dignos de entrar no céu. Se 0 fogo desta vida criado por Deus para nos servir já é terrível, que não será o fogo da Divina Justiça?

O fato seguinte é narrado pelo piedoso Monsenhor De Segur.
  Em 1870, diz o piedoso prelado, eu vi e toquei em Foligno, perto de Assis, na Itália, uma destas ter­ríveis provas de fogo pelas quais as almas do purga­tório, por permissão de Deus, às vezes atestam que o fogo do purgatório é um fogo real. Em 1859 mor­reu de uma apoplexia fulminante a boa Irmã Teresa Gesta, que durante longos anos foi mestra de Novi­ças. Doze dias depois, em 16 de Novembro, uma Ir­mã, chamada Ana Felícia, subia à rouparia quando ouviu um angustioso e triste gemido: — Jesus! Maria! Que é isto? Exclamou assustada a Irmã. Não havia acabado de falar, quando ouviu uma queixa: Ai! Meu Deus! Meu Deus! Quanto sofro! Irmã Ana reconheceu logo a voz da defunta Irmã Teresa. Um cheiro sufocante de fumaça encheu toda a rouparia e percebeu-se o vulto da Irmã Teresa que se dirigia para a porta e tocava na mesma com a mão direita, dizendo: Aqui fica a prova da misericórdia de Deus. E na madeira da porta ficou carbonizada e impressa a mão da defunta, que desapareceu. Irmã Ana pôs-se a gritar numa grande excitação nervosa. A comu­nidade correu para acudi-la e sentia-se um cheiro sufocante de fumaça. A Irmã conta o que se passa e reconhecem todas, na mão pequenina gravada no portal, a mão da Irmã Teresa, que se distinguia muito pela sua pequenez e delicadeza. As Irmãs, comovidas, vão ao coro e oram pela defunta. Passam a noite em oração e penitências em sufrágio da saudosa mestra de noviças. No dia seguinte oferecem a Santa Comunhão por aquela alma. Mais um dia se passa e Irmã Ana Felícia ouve e vê depois Irmã Teresa radiante de glória toda bela, que lhe diz com doce voz: “Vou para a glória! Sede fortes e corajosas na luta, fortes em carregar a cruz!” E desapareceu numa luz brilhantíssima.
  Este fato portentoso é narrado por Monsenhor de Segur, que visitou o Convento das Terceiras Regulares Franciscanas daquela cidade, foi submetido a um rigoroso processo ordenado pelo Bispo de Foligmno em 23 de Novembro de 1859.

[1] Purgatório, o. VIII.
[2] Sum. Theol. supp. quaestio, c. X, art. 3.
[3] Traité du Part., II.
[4] Le Christianisme et lês temps presents. — Tomo V, c. XIV.
[5] Suppl. quaest. c, art. 3.
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Fonte:
Tenhamos Compaixão das Pobres Almas!
30 meditações e exemplos sobre o Purgatório e as Almas, por Monsenhor Ascânio Brandão

Livro de 1948 - 243 pags, Casa da U.P.C. Pouso Alegre

5 de Novembro




O PURGATÓRIO, A RAZÃO E O CORAÇÃO

Razões do purgatório

Qual a razão de ser do purgatório? É o pecado. É o obstáculo que impede a alma de entrar no céu sem estar purificada e digna da visão beatífica. O pecado mortal leva ao inferno. Separa para sempre a alma de Deus. Entretanto, veio o perdão pela infi­nita misericórdia e o pecador arrependido muda de vida e não mais volta aos seus desvarios. Todavia, não fez a devida penitência, não reparou o seu crime neste mundo por uma penitência. Fica-lhe ainda uma dívida a pagar à Divina Justiça. O pobre pecador cul­pado de muitas faltas veniais passa desta para outra vida, vai prestar contas a Deus. Aquele Deus de to­do santidade, o Santo por excelência, a Justiça mes­ma, não quer condenar a quem já perdoou, não há de perder quem, embora manchado de leves culpas, de muitas imperfeições, não é todavia inimigo de Deus. Que há de fazer? Levá-lo para o céu, onde nada pode entrar manchado? Impossível! Seria ter uma noção errada da santidade e da infinita pureza de Deus, admitir este absurdo. Condenar às penas eternas quem, embora tivesse pecado, não chegou à culpa mortal e não se separou do Senhor porque não per­deu o estado de graça? Então para onde irá a alma assim manchada e não de todo santa e perfeita para o céu? Eis a razão a nos dizer: há de existir uma purificação além desta vida entre as duas eternida­des, um purgatório que nos livre do inferno e que seja o vestíbulo do paraíso, uma expiação necessária para as almas. Pode-se ir para o purgatório por três motivos: primeira, pelos pecados veniais não remi­dos ou perdoados neste mundo; segundo, pelas incli­nações viciosas deixadas em nossa alma pelo hábito do pecado; terceiro, pela pena temporal devida a todo pecado mortal ou venial cometido depois do batis­mo e não expiado ou expiado insuficientemente nes­ta vida.

Depois da morte não há mais reparação nem pe­nitência nem mérito. Havemos de pagar a dívida de nossos pecados até o último ceitil, como diz o Evan­gelho.

Ora, é necessário o purgatório. É um dogma muito conforme à razão e bom senso. A existência do purgatório, dizia o grande Conde De Maistre, se apoia na natureza de Deus e na natureza do homem. Digo — na natureza de Deus. Deus é Santidade, Jus­tiça e Caridade. Como Santo, Deus não pode admitir união entre a sua pureza infinita e nossas manchas. Como Deus, é bom, não pode deixar perecer para sem­pre a obra das suas mãos que lhe implora o perdão. Daí a necessidade de um lugar de expiação. A razão do purgatório também se baseia na natureza do ho­mem. Está na natureza humana procurar se purifi­car para ter um alívio, porque a falta coloca o homem em desarmonia com seu fim último. Ora, a alma não pode se purificar sem sofrimento, sem penas. O purgatório é esta expiação, esta purificação que a alma procura. Para fazer cessar este desacordo entre ela e Deus e torná-la apta para gozar da felicidade de Deus sem as manchas de suas faltas. Eis aí como é racional e que harmonia no dogma do purgatório!

Razões de sentimento

Vemos tantos entes queridos que deixaram esta vida, é verdade, em boas disposições, mas como eram culpados de certas faltas e não haviam feito uma pe­nitência devida, receamos às vezes pela sua salva­ção. Todavia nos diz o coração que não podiam se perder. Eram bons, tinham qualidades apreciáveis, foram talvez caridosos e fizeram algum bem nesta vida. Admitir que estejam no céu depois de tantas faltas e defeitos e ausência de penitência, não o po­demos. Dizer que estejam condenados, é muito duro, e, apesar de tudo, como poderiam ter se perdido al­mas tão caridosas e boas e que fizeram algum bem neste mundo? A idéia do purgatório se impõe neces­sariamente à nossa razão antes de se impor à nos­sa fé.

Escreve o Pe. Faber: “O purgatório explica os enigmas deste mundo. Dá solução a uma multidão de dificuldades. Em face deste sistema, que podería­mos chamar o oitavo e terrível Sacramento do fogo que atinge as almas, às quais os sete sacramentos não deram uma pureza perfeita. O purgatório é uma invenção de Deus para multiplicar os frutos da Pai­xão de nosso Salvador e que Ele estabeleceu preven­do a grande multidão de homens que deveriam mor­rer no amor de Deus, mas num amor imperfeito. Não é uma continuação além-túmulo das misericór­dias prodigalizadas no leito de morte? Isto nos es­clarece tanto e nos faz supor que muitos católicos se salvam, principalmente os que viveram neste mun­do na pobreza, no sofrimento e nas provações”.

O dogma do purgatório também encontra fun­damentos e raízes no coração humano, escreveu Mons. Bougaud. É um intermediário entre a Justiça e a Mi­sericórdia, como o divino auxiliar do amor. Tirai o purgatório, e a justiça seria terrível. Seria inexo­rável. Felizmente, esta aí o purgatório. O Amor in­finito o criou. O purgatório não serve apenas para temperar e satisfazer a justiça. Serve também para dilatar a misericórdia. Serve para explicar a mise­ricórdia de Deus que se contenta, na hora da morte, com um pouco de arrependimento do pecador.

Não é pois consolador pensar na existência do purgatório, pelo qual se poderão salvar tantas almas? A impiedade e a heresia, negando o dogma da expiação além-túmulo, se põem contra a razão. O purgató­rio, diz ainda o célebre Mons. Tiamer Toth, é a melhor resposta aos erros da reencarnação. Há um so­frimento purificador depois desta vida. O cristia­nismo ensinou isto muito antes que as filosofias ne­bulosas do Oriente semeassem na alma do homem moderno o erro da reencarnação, que não tem a seu favor argumento de espécie alguma. Também nós pregamos que há purificação além-túmulo! Esta pu­rificação se faz na justiça de Deus e com o fim de salvar uma alma por toda eternidade e torná-la dig­na da Pureza Infinita, que é Deus. O purgatório é um combate aos erros do espiritismo, porque nos manda orar e sufragar os mortos sem se preocupar em conversar com eles, na certeza de que estão nas Mãos da Divina Justiça e já não podem se comu­nicar com os vivos. Que dogma racional e de quantos erros e superstições nos livra!

Nossos mortos

Havemos de chorar nossos mortos e a religião não nos pode proibir as lágrimas tão justas, quando sentimos nosso coração ferido pelo golpe duro da sau­dade. Todavia, havemos de chorar cristãmente nos­sos defuntos queridos. É mister lembrar-se deles mais com orações e sufrágios do que com lágrimas esté­reis. O pensamento do purgatório é um consolo. Sa­bemos que podemos ainda auxiliar, valer e socorrer nossos entes queridos. É bem possível que padeçam no purgatório.

A religião de Nosso Senhor Jesus Cristo não proíbe que choremos os nossos mortos queridos. Pode­mos, pois, render a estes o tributo de nossas lágri­mas e de nossas saudades. Com esta pobre natureza, como ficarmos insensíveis ante a morte de um ente estremecido? Como nos custa ver arrebatados pela morte os entes com quem convivemos, nosso pai, nos­sa mãe, nosso filho, nosso irmão, nosso amigo!... A religião, se bem que nos ensine a ser fortes na dor e a meditar na Paixão de Jesus Cristo, não nos veda aquelas lágrimas e saudades. Ela não tem o estoicis­mo pagão, estúpido e antinatural. Pois Jesus não chorou na sepultura de Lázaro? Não choraram, na Paixão, Maria e Madalena e as Santas Mulheres? A religião nos permite chorar do mesmo modo os nos­sos mortos. Quer apenas que o façamos, não como os pagãos, desesperados e desiludidos, mas como quem tem esperança na vida eterna e crê na imortalidade. Choremos a separação dolorosa, mas com a doce es­perança de que, um dia, numa pátria melhor, onde não haverá nem luto, nem dor ou sofrimento de qual­quer espécie, nem separação, tornaremos a ver todos aqueles que amamos aqui na terra. Como essa esperança consola! O cristão não deve dizer com desespero, ante o cadáver gelado de um ente querido: — “Nunca mais te verei! Adeus para sempre!”. Não! Embora em pranto, suas palavras devem ser estas:

— “Até ao céu! Lá nos tornaremos a ver c seremos para sempre felizes!”.

O dogma do purgatório, tão em harmonia com nosso coração, nos diz que podemos ainda ajudar nos­sos mortos queridos para podermos dizer-lhes: até o céu!

Exemplo
A Bem-aventurada Ana Taigi e o purgatório

Deus lhe revelou muitas vezes a sorte das almas do purgatório. Ela pedia continuamente pelas pobres almas, num misterioso sol que sempre lhe aparecia, foi uma grande mística do século XIX.

Em 30 de Maio de 1920, S.S. Bento XV decla­rava Bem-aventurada a humilde e pobre mãe de fa­mília, que durante tanto tempo chamou a admiração de Roma e do mundo com tantos prodígios sobrena­turais. A Beata Ana Taigi, romana de nascimento, via todos os acontecimentos futuros e a sorte dos mortos.

Um homem, conhecido de Ana, morreu, e ela o viu nas chamas do purgatório, salvo do inferno pela Divina Misericórdia, porque socorreu um pobre que o importunava muito pedindo esmola. Viu um conde cuja vida se passou em delícias e divertimentos, mas que na hora da morte teve um grande arrependimen­to e se salvou, mas deveria sofrer no purgatório tor­mentos incríveis tanto tempo quanto passou neste mundo sem se preocupar com a penitência e com a salvação eterna.

Viu homens de grande virtude sofrendo porque se deixaram levar pela vaidade e amor próprio, mui­to apegados aos elogios e à amizade dos grandes da terra.

Um dia Nosso Senhor lhe disse: levanta-te e reza, meu Vigário na terra está na hora de vir me prestar contas. Ana sufragou a alma do Papa e depois o viu como um rubi ainda não de todo brilhante, pois lhe faltava se purificar mais.

Faleceu em Roma o Cardeal Dória, que deixou grande fortuna, e naturalmente celebraram-se por sua alma centenas de Missas. Foi revelado à Beata Ana Taigi que as Missas celebradas por alma do Car­deal eram aproveitadas para as almas dos pobrezinhos abandonados e que não tinham quem mandasse celebrar por eles.

Via-se assim a Divina Justiça que não olha a ri­queza nem as possibilidades dos ricos em arranjar sufrágios, com descuido às vezes neste mundo da ver­dadeira penitência.

Viu Ana no purgatório um sacerdote muito esti­mado por suas virtudes e sobretudo pelas brilhantes pregações que fazia e o tornavam admirados de todos. Sofria muito este pobre padre. Foi revelado à Beata que expiava a falta de procurar com muito empenho a fama de bom pregador e um pouco de vaidade ao pregar a palavra de Deus, sobretudo nas complacências com os elogios.

Viu dois religiosos muito santos no purgatório, em sofrimentos duros. Um deles expiava o seu apego ao próprio juízo e pouca submissão ao modo de ver de outros, e outro a dissipação, a falta de recolhi­mento e piedade no exercício do ministério sacerdotal.


Enfim, a Beata Ana trouxe com a sua bela e im­pressionante mensagem do sobrenatural no século XIX, muitas luzes sobre o purgatório e impressio­nantes lições da Justiça de Deus, e também não há dúvida, da Infinita Misericórdia que salva tantas al­mas pelas chamas expiadoras do purgatório.

4 de Novembro. O PURGATÓRIO A justiça e a misericórdia


  
O PURGATÓRIO

A justiça e a misericórdia

Existe o purgatório, isto é, um lugar de expia­ção onde se purificam as almas para a visão beatifica.

Quem é digno de subir à Montanha Santa? Quis ascendit in montem Domini? Quanta santidade e pu­reza de vida exige o Senhor dos que há de admitir à sua presença, à presença daquele Deus três vezes santo, ante o qual os serafins cobrem as faces com suas asas e os céus repetem: Sanctus, Sanctus, Sanc­tus — Santo, Santo é o Senhor Deus dos Exércitos!

A pobre criatura humana tão miserável nem sempre, ao deixar a terra, é bastante pura e santa e merece a presença do Senhor, a visão beatífica. E também como há de ser condenada às chamas eter­nas a alma que, embora não tivesse pago a dívida dos seus enormes pecados na penitência desta vida, não é todavia merecedora do castigo eterno? Há de en­trar no céu? Não. Lá só se encontram os santos e os puros de coração. E que pureza angélica requer a divina Justiça para o céu!

Há de ser condenada ao inferno? Oh! Não. A misericórdia divina jamais o permitiria. Faltas ve­niais, imperfeições, falta de penitência dos pecados

graves, tudo isto, é bem verdade, exige castigo e sem a penitência não se há de entrar no céu. Porém, a Justiça e a Misericórdia divina se uniram — Justitia et pax osculatae sunt. — E inventaram uma obra-prima desta mesma justiça e desta misericórdia in­finitas do Senhor.

O pecado será castigado, a dívida exigida pela justiça será paga até o último ceitil, mas a infinita misericórdia há de salvar a pobre alma culpada, há de lhe abrir um dia as portas do céu.

Existe um purgatório!

Não é consoladora e racional a doutrina da Igre­ja neste dogma?

A Sagrada Escritura

A oração pelos mortos e a existência de um lu­gar de expiação, claramente se encontram afirmadas nos livros santos. Recordemos o texto do livro se­gundo os Macabeus (12-43-36) e que serve de epís­tola na missa do aniversário dos defuntos:

“Naqueles dias, o varão forte chamado Judas, havendo feito um peditório, recolheu a quantia de do­ze mil dracmas, que enviou para Jerusalém, para ser oferecido um sacrifício pelos pecados dos mortos; pois ele possuía bons e religiosos sentimentos acerca da ressurreição (e, com efeito, se ele não esperasse que aqueles que haviam sucumbido ressuscitassem um dia, teria pensado que era vão e supérfluo orar pelos mortos). Assim, ele acreditava que uma abun­dante misericórdia estava reservada para aqueles que morressem piedosamente; pois, na verdade, é um santo e salutar pensamento orar pelos mortos, para que sejam livres dos seus pecados”.

Que se conclui do texto sagrado? Há um lugar de expiação e podemos orar pelos mortos, pois é santo e salutar este pensamento.

E o Evangelho? Algum texto deste livro de to­dos o mais sagrado, prova a existência do purga­tório? Sim, segundo os mais autorizados comenta­dores e Santos Padres, este ponto da nossa fé não deixou de ser afirmado por Nosso Senhor. (“Aquele que blasfemar contra o Espírito Santo, diz Jesus, não será perdoado nem neste mundo nem no outro”).

Logo, há pecados que são perdoados no outro mundo, isto é, são expiados no purgatório.

“Não hesites em fazer as pazes com teu adver­sário, diz Jesus, enquanto estiveres em caminho com ele, para que não vá te entregar ao oficial da Justiça e sejas lançado no cárcere. Em verdade te digo, daí não sairás enquanto não houveres pago o último ceitil”.

Estas palavras nos indicam a existência na vida futura de um lugar onde se pagam as dívidas morais, isto é, o purgatório.

O Apóstolo dos gentios diz que aqueles que misturaram nas obras de Deus as preocupações do amor próprio, serão salvos, mas passando pelo fogo.

Notai bem: serão salvos. Portanto, não serão condenados ao inferno, mas passarão pelo fogo, isto é, hão de sofrer e se purificar. — Eis o purgatório.

Os Santos Padres e os Concílios

Desde Orígenes e Tertuliano, encontramos nos Santos Padres a prova de que a crença do purgatório sempre existiu na Igreja, desde os tempos primitivos. As inscrições das catacumbas demonstram que ora­vam os primeiros cristãos pelos mortos. Tertuliano exorta uma viúva cristã a conservar pelo falecido es­poso a mesma ternura, rezando por ele.

Perguntaram a São João Crisóstomo o que era preciso fazer pelos defuntos. Respondeu ele: “É pre­ciso ajudá-los com ardentes súplicas e especialmente com a prece litúrgica por excelência, o Santo Sacri­fício da Missa”. Santo Ambrosio diz o mesmo, escre­vendo a Faustino: “Chorai menos e rezai mais. Der­ramais lágrimas, isto é permitido, mas não deixeis de recomendar ao Senhor a irmã querida que vos deixou”.

Diversos Padres da Igreja afirmam claramente o que a Escritura e a tradição demonstram: a exis­tência do purgatório.

Em Cartago, São Cipriano, no século terceiro, fala do sufrágio dos mortos que ele recebera da tra­dição dos seus predecessores.

Santo Agostinho louva a Parchius porque em vez de rosas, lírios e violetas sobre os túmulos, der­rama o perfume da esmola sobre as cinzas dos mor­tos queridos. E diz mais claramente, num sermão aos seus diocesanos de Hipona: “Não há dúvida que as orações da Igreja e o sacrifício salutar e as esmolas dos fiéis ajudam os defuntos a serem tratados mais docemente do que mereciam os seus pecados”.

O que aprendemos de nossos pais, diz o Santo Doutor, e o que a Igreja Universal observa, é fazer memória no sacrifício dos que morreram na Comu­nhão do Corpo e do Sangue de Cristo, e rezar e ofe­recer por eles o Sacrifício. Pede orações no santo al­tar pela alma de Monica, sua mãe.

Recomendemos a Deus, diz São Gregório Nazianzeno, as almas dos fiéis que chegaram antes de nós ao lugar do repouso.

São Cirilo escreve: “Não é por lágrimas que se socorre um defunto, mas pelas orações e as esmolas. Não deixeis de assistir os mortos, rezando por eles”.

E muitos outros Padres da Igreja afirmaram claramente a existência do purgatório e a eficácia dos nossos sufrágios. Agora, vejamos a autoridade dos Concílios.

Inúmeras assembléias provinciais e ecumênicas afirmaram o dogma do purgatório e recomendaram os sufrágios e orações pelas almas. Assim os Concílios provinciais de Cartago — ano 312 — Canon 29 — o de Orleans em 533 — Canon 14 — o de Praga em 563 — Canon 34 — Chalons sur Saône cm 580 e os Concílios ecumênicos de Latrão, Florença e sobre­tudo o Concilio de Trento não definiu a natureza ape­nas do purgatório, mas afirmou os pontos essenciais do dogma da seguinte forma: Como a Igreja católica de conformidade com a Sagrada Escritura e a anti­ga tradição dos Padres ensinou nos Concílios anterio­res e no presente sínodo universal que existe um lu­gar de expiação, e que as almas ali encerradas po­dem ser aliviadas pelos sufrágios dos fiéis e princi­palmente pelo Sacrifício do Altar, o Santo Concílio or­dena aos bispos que tomem cuidado para que uma pura doutrina no que respeita ao purgatório, con­forme a tradição dos Santos Padres e dos Concílios, seja acreditada e sustentada por todos os que per­tencem à Igreja e seja ensinada e pregada em toda parte. As questões difíceis e árduas neste ponto que não poderiam servir para a edificação e nem favore­cer a piedade, devem ser evitadas nas exortações ao povo. É mister também evitar a exposição de opi­niões incertas e com aparência de erro. E definindo, conclui: se alguém disser que a graça da Justifica­ção, a culpa e a pena eternas são de tal modo perdoa­das ao penitente, que não resta pena temporal a sofrer neste mundo e no outro no purgatório antes de entrar no reino do céu, seja anátema.

E outro Canon: “Se alguém disser que o Santo Sacrifício da Missa não deve ser oferecido pelos vivos e os mortos, pelos pecados e penas, as satisfa­ções e outras necessidade, seja anátema”.

Eis aí toda a doutrina da Igreja sobre o purga­tório. Que se conclui então? Há só dois pontos, per­feita e claramente definidos, e que somos obrigados a crer: 1) — Existe um lugar de purificação tempo­rária para as almas justificadas que saem desta vida sem completa penitência dos seus pecados. 2) — Os sufrágios dos fiéis e especialmente o Santo Sacrifí­cio da Missa são úteis às almas.

Eis aí, em síntese, a consoladora doutrina da Igreja sobre o dogma do purgatório.

Exemplo

Santa Perpétua e o purgatório

Já nos primeiros séculos, segundo o testemunho de Tertuliano e dos Santos Padres e os monumentos, os cristãos sufragavam os mortos com orações, e pelo Santo Sacrifício da Missa celebrado sobre as sepulturas. Nas inscrições e, nos epitáfios se encontram nas catacumbas belas preces pelos mortos. No século IV em 302, Santa Perpétua nos conta uma visão do purgatório. Diz ela:

“Estávamos em oração na prisão, depois da sen­tença que nos condenava a sermos expostas às fe­ras, e de repente chamei por Denócrato. Era um meu irmão segundo a carne. Morrera com um câncer na face. A lembrança da sua triste sorte me afligia. Fi­quei admirada de me ter vindo à lembrança este ­irmão e me pus a rezar por ele com todo fervor, ge­mendo diante de Deus. Na noite seguinte, tive uma visão na qual vi Denócrato sair de um lugar tenebro­so no qual se acham muitas pessoas. Estava abatido e pálido, com a úlcera que o levou à sepultura. Tinha uma grande sede. Junto de mim estava uma bacia com água, mas ele em vão tentava beber e não con­seguia. Conheci que meu irmão estava sofrendo e era preciso rezar por ele. Pedi por ele dia e noite com muitas lágrimas, para que fosse libertado. Alguns dias depois tive outra visão, na qual Denócrato me apareceu todo brando, brilhante e belo, e se inclinou e bebeu à vontade a água que antes não pude tirar. Conheci por isto que estava livre do suplício”.

Eis um belo trecho que vem provar a antiguida­de da crença do purgatório.

Santo Agostinho reconhece a autenticidade das Atas de Santa Perpétua e nota que o irmãozinho da Santa deveria ter cometido alguma falta depois do batismo.


3 de Novembro




DEPOIS DA MORTE...

Com a morte tudo se acaba?
  
Sim, é verdade, com a morte tudo se acaba. Lá se vão as riquezas, as honras, o luxo, as glórias ter­renas e até nosso pobre corpo tão miserável se trans­forma num monturo asqueroso e horrível. Vamos ao pó donde viemos. Tu és pó e em pó te hás de tornar. Seremos quanto ao corpo, nada, pó, um punhado de lodo. Todavia, temos uma alma imortal, criada à ima­gem e semelhança de Deus, e esta não se acaba. É espiritual. Separa-se do corpo que ela vivificou, mas não morre. A morte não é mais do que a separação da alma do corpo. Então ne
m tudo se acaba na morte. Fica o principal, a alma.

Fica tudo — uma alma remida pelo Sangue de um Deus.

Não somos um bruto que nasce, cresce, morre e desaparece num monturo para sempre.

Um amigo de Sócrates, o célebre filósofo grego condenado à morte, perguntou-lhe antes que o vene­no da cicuta arrebatasse a preciosa vida:

— Tem algum deseja para que o cumpramos? Porventura alguma disposição sobre o enterro?

— Que querem? Meu amigo, pensam então em me sepultar? Podem enterrar meu corpo, mas a mim não poderão sepultar.

Resposta de um pagão consciente da sua imorta­lidade.

E nós, cristãos, podemos com muito mais razão dizer: — sepultam nosso cadáver, nosso pobre e mi­serável corpo. Ficamos nós, porém, vivos e imortais. Não morreremos. Não morre nossa alma. A imortalidade de nossa alma é uma verdade tão clara, que nunca houve povo tão bárbaro que nela deixasse de crer. Repugna e revolta ao nosso ser todo, a idéia estúpida do materialismo apontando-nos a sepultura e um punhado de pó como a única e última finalidade de nossa existência.

Com a morte tudo se acaba?

Sim, quanto ao corpo, até a ressurreição da car­ne no dia do Juízo.

E quanto à alma, então sim é que tudo começa. Começa a eternidade...

A vida passa depressa. Somos crianças neste mundo, sempre iludidos pelas bagatelas e loucuras do pecado. Andamos à caça de borboletas de ilusões. Depois... depois... Virá a hora da despedida de tudo quanto é terreno. E havemos de partir para a casa da nossa eternidade.

Diz a Escritura: Irá o homem para a casa da sua eternidade.

Ora, morrer é, pois, ir para a casa. Deus é Pai. Iremos pois então para a casa de nosso Pai. Haverá coisa mais bela e mais consoladora? Como é bela a esperança cristã!

E como é horrível o materialismo a considerar o túmulo um punhado de lodo, o último e fatal destino de um homem!
 
E depois?
  
Depois, quando nossa alma se separar do corpo, o que constitui a morte, todos nós compareceremos ante o Tribunal Divino e seremos julgados. Omnes stabimus ante tribunal Domini nostri Jesu Christi! Que dia aquele e que hora tremenda a da sentença! Estaremos em face de duas eternidades: Céu ou Inferno! Post hoc judicium... Depois da morte o Juízo. Daremos contas severas a Deus de tudo. Nossa vida inteira se passou na presença do Senhor que tudo sa­be e penetra até os nossos mais secretos pensamen­tos. “Cada dia, escreveu Bossuet, cada instante a Justiça de Deus registrou nossas ações. Cada momen­to de nossa existência, cada respiração, cada batida de nosso pulso, si assim posso me exprimir, cada manifestação de nosso pensamento tem consequências eternas. E toda esta história sem igual nos será apre­sentada um dia”.

Sim, toda a nossa vida, e até as nossas mais se­cretas intenções irão ao Tribunal de Deus, no dia e na hora em que nossa alma se separar deste corpo de morte. Quem é o Juiz? Deus Santo, a Santidade em essência, Deus que tudo sabe e tudo vê, Deus que num instante nos apresenta toda a nossa vida, com seus pecados e misérias, bem como as boas obras que fizemos ou deixamos de fazer. Daremos conta tam­bém do abuso da Graça e dos pecados de omissão. Meu Deus! Meu Deus! Que tremendo Juízo nos está reservado! Que responsabilidade a do cristão em face da morte! Será a morte apenas um estúpido aniquilamento? Será uma podridão de vermes numa sepultu­ra, e nada mais além disto? Ó não, mil vezes não!

A morte é a porta da eternidade, e ela nos lan­ça, despojados de tudo, sozinhos, com o peso de nos­sos pecados ou de nossas boas obras, na face do Se­nhor, do Juiz eterno dos vivos e dos mortos para ser­mos julgados. Já meditamos seriamente nisto? Já pesamos a tremenda responsabilidade da vida? En­tretanto, como se procede tão levianamente em face da morte! Que insensatos são os homens quando nem querem pensar na morte, e procuram se iludir para melhor viveram no pecado!

Daremos contas a Deus de nossa vida. Exame rigoroso de tudo... até “de uma palavra ociosa”, diz Nosso Senhor no Evangelho. E depois? Virá a sen­tença. Duas eternidades: céu e inferno! Acreditam? Tanto melhor! Não acreditam? — Pois não deixará de existir o inferno, nem o céu deixará de ser a mais consoladora das realidades por que alguns materia­listas ou cristãos degenerados não querem crer. Ire­mos para a casa da nossa eternidade! Ibit homo ad domum aeternitatis suae. Iremos, sim, mais cedo ou mais tarde. Estamos preparados? Preparados para o Juízo? Então seremos salvos pela Divina Misericórdia si a morte não nos encontrou no pecado e na inimi­zade de Deus. Somos porém bem puros para compa­recermos diante de Deus e entrarmos na vida eterna? Ai! Quanta miséria e fragilidade! E fizemos tão pou­ca penitência, neste mundo, dos nossos pecados! Res­ta-nos o purgatório. Para lá iremos quase todos, ire­mos nos purificar, antes da recompensa eterna. Poderíamos dizer em geral: depois do Juízo... o Pur­gatório!
  
No purgatório...

Quando levamos nossos mortos queridos à sepul­tura, costumamos dizer: descansaram!... Sim, des­cansaram das fadigas e lutas desta vida que é um combate no dizer expressivo de Jó: militia est vita ho­minis super terram — a vida do homem neste mundo é um combate. Porém, descansaram já no seio de Deus? Estão já no eterno repouso do céu? Ai! É tão grande a fragilidade humana, que bem poucos, raríssimos, são os que deixam esta vida e entram logo no céu. Os mortos entraram, sim, na paz do Senhor, mas na paz da Justiça, geralmente na paz da expiação do purgatório. O purgatório é lugar da paz. Lá habita a doce paz dos eleitos, dos que resignados e cheios de amor e de dor cumprem a sentença e se purificam à espera do céu. Já se chamou ao purgatório, e com razão, o vestíbulo do paraíso. É o pórtico da eterni­dade bem-aventurada.

Sim, nossos mortos descansaram, mas sofrem, e sofrem muito mais do que tudo quanto padeceram nesta vida. O fogo das provações neste mundo, quei­ma a palha. O fogo do purgatório acrisola o ouro. É terrível! Em face da morte deveríamos pensar na expiação das pobres almas que foram prestar contas a Deus e, talvez, sofram no purgatório. Não digamos comodamente: estão no céu! estão no céu! Com isto padecem almas no purgatório. Iremos meditar o que é e o que padecem as almas do purgatório. A Igreja pelas lições impressionantes da sua Liturgia quer que associemos ao pensamento da morte o da eternidade. E, diz o Prefácio da Missa dos defuntos, si a condição da nossa morte nos entristece, console-nos a pro­messa da imortalidade futura.

E depois, quantas vezes gemendo sobre nós, cla­ma: Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno! Dai-lhes o descanso eterno! Implora misericórdia para nossa po­bre alma, lembra o Juízo tremendo de Deus, e quer nos aliviar nas chamas expiadoras do purgatório. Nunca meditemos na morte sem meditarmos no pur­gatório. É este o sentido da Liturgia nos funerais.

Estas preces tocantes e belas, estes ritos impres­sionantes e cheios de majestade, lembram-nos a nossa dignidade de cristãos, a dignidade de nosso corpo, sacrário de urna alma imortal e templo do Espírito Santo, destinado a ressuscitar um dia e comparecer no Tribunal do Juízo. Lembram-nos a triste condi­ção de urna pobre alma ao comparecer diante de Deus, e implora misericórdia ao Juiz dos vivos e dos mor­tos. Sim, não podemos, como cristãos e filhos da Igreja, separar o pensamento da morte do da eter­nidade. E como sabemos qual é a Justiça de Deus, não deixaremos de considerar que após a morte, aí vem o purgatório para quase todos nós, e que lá na expiação, há muitas almas queridas pelas quais so­mos obrigados a orar por dever de Justiça e de ca­ridade. Eis pois, repito, o sentido da meditação da morte e da Liturgia dos mortos. Não é um pensa­mento de morte, não estão vendo? É ao invés um pen­samento de vida. Vita mutatur non tollitur, diz o Prefácio dos defuntos. A vida não foi tirada, nem desapareceu, mudou-se apenas. De terrena passou a ser eterna. Eis como o cristão pensa na morte!
  
Exemplo

As almas do purgatório na hora da morte dos que as socorrem
  
É certo, diz um autor, a ingratidão não pode existir no Purgatório. Aquelas benditas almas hão de proteger e socorrer os que as aliviam nesta vida com seus sufrágios. O célebre Cardeal Baronio con­ta que uma pessoa devota das santas almas foi terri­velmente tentada na hora da morte. Estava desolada e quase em estado de desespero, quando uma multidão de pessoas veio em seu auxílio. Logo ficou livre de toda tentação e entrou em doce paz. Perguntou curiosa:

— Que multidão é esta que entrou aqui e na mesma hora senti tanto alicio e fui socorrida pelo céu?

— Somos as almas que tirastes do purgatório, responde uma doce voz, e viemos buscar vossa alma para juntos entrarmos no céu.

Ao ouvir estas palavras, a agonizante feliz sor­riu e expirou.

São Felipe Neri era também devotíssimo das al­mas, e, cheio de caridade, nunca deixou de socorrê-las em toda sua vida. Muitas vezes lhe apareceram para lhe testemunhar uma gratidão profunda. De­pois da morte do Santo, um dos seus confrades o viu na glória do céu, cercado de uma multidão de bem-aventurados no esplendor da glória eterna.

— Que corte é esta que vos cerca? Pergunta o Padre.

— São as almas que livrei do purgatório e que salvei. Vieram me acompanhar na glória.

Um dia Santa Brígida, numa visão que teve do purgatório, ouviu a voz de um Anjo que descia do céu para consolar as almas e repetia:

— Bendito seja aquele que ainda na terra en­quanto vivo, ajuda as almas do purgatório com suas orações e boas obras! A justiça de Deus exige que necessariamente as almas sejam purificadas pelo fo­go e as obras boas dos amigos das almas as podem livrar do sofrimento.

Dos abismos a Santa ouviu também esta súplica: “Ó Cristo Jesus, nosso Juiz justíssimo, em nome da vossa misericórdia infinita não olheis as nossas faltas que são inumeráveis, mas os méritos do vosso Preciosíssimo Sangue na Paixão! Senhor, fazei que os eclesiásticos, religiosos e prelados, com um senti­mento de caridade que vós lhe dareis, venham nos socorrer em nossa triste situação por suas orações, esmolas e indulgências, que eles nos tirem de nossa triste situação”.

Outras vozes respondiam agradecidas: Graças, mil graças, Senhor, a todos os que nos aliviam em nossas desgraças. Senhor, que o vosso poder pague o cêntuplo aos nossos benfeitores que nos levaram a vossa eterna e divina luz.

Era a voz da gratidão do purgatório.

Na morte e depois da morte seremos recompen­sados pelo que tivermos feito em sufrágio das bendi­tas almas do purgatório.

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Fonte:
Tenhamos Compaixão das Pobres Almas!
30 meditações e exemplos sobre o Purgatório e as Almas, por Monsenhor Ascânio Brandão

Livro de 1948 - 243 pags, Casa da U.P.C. Pouso Alegre


2º de Novembro. O dia dos mortos

                      


                                                         Finados
      É o dia dos fiéis defuntos em toda Igreja. Uma lembrança dos que já passaram e dormem o sono da paz. Qui dormiunt in somno pacis.
Toda a Liturgia recorda o dogma do purgatório e pede-nos orações pelos nossos mortos. A Igreja se cobre de luto e os sacerdotes podem, neste dia, cele­brar três vezes o Santo Sacrifício. As multidões afluem aos cemitérios. É a lembrança de nossos mor­tos despertada. Avivam-se as saudades. Finados! Dia dos mortos! Lembramo-nos deles apenas com al­gumas flores e umas lágrimas que com o tempo se vão estancando, ou procuramos sufragar-lhes as po­bres almas que talvez ainda estejam sofrendo no pur­gatório? Este dia nos foi dado pela Igreja, não para as pompas e manifestações de um sentimentalismo estéril, mas para sufrágio dos mortos. Como se es­quecem disto muitos cristãos! Multidões que enchem os cemitérios, sorrindo e até brincando muita vez, sem orações, sem um pensamento sobrenatural dos mortos! Santifiquemos este dia. Seja, sim, o dia da nossa saudade, mas principalmente seja o do nosso sufrágio.
A Igreja, nossa Mãe, neste dia abre-nos os te­souros das suas indulgências em favor dos mortos. Permite a celebração das três Santas Missas desde a Constituição Apostólica de 15 de Agosto de 1915, de Bento XV. Duas Missas pertencem: uma aos fiéis defuntos em geral e outra nas intenções do Sumo Pontífice. Concede uma grande indulgência, seme­lhante à da Porciúncula, em favor dos defuntos. Aos que visitarem uma igreja ou oratório público ou semi-público, indulgência plenária cada vez aos que en­trarem na igreja e rezarem seis Padre-Nossos e seis Ave-Marias nas intenções do Sumo Pontífice, con­tanto que tenham se confessado e recebido a Santa Comunhão. (P. P. O. 544.)
Que tesouro de indulgência em favor das pobres almas! Mais ainda, todas as Santas Missas celebra­das no dia de finados pelos mortos, e durante a oi­tava gozam do altar privilegiado. A visita ao cemi­tério também neste dia tem uma indulgência plená­ria. Porque nos abre assim a Igreja estes tesouros? Para nos estimular a devoção aos mortos e o zelo pelo sufrágio das almas.
Tudo no Ofício Divino deste dia nos fala da mi­séria humana, pelas lamentações dolorosas de Jó, e repetem gemidos que parecem vir das profundezas do abismo: Miseremini mei! miseremini mei! Saltem-vos amici mei quia manus Domini tetigit me! Tende pie­dade de mim, tende piedade de mim, pelo menos vós que sois meus amigos, porque a mão de Deus me fe­riu. Sim, a mão da Justiça de Deus feriu as pobres almas para santificá-las, purificá-las e torná-las dig­nas do céu.
Com a Igreja, nossa Mãe vestida de luto, vamos chorar nossos mortos, e, rezando por eles, reafirmar nossa fé na imortalidade de nossa alma e na ressur­reição da carne. Digamos de coração: Requiem aeternam dona eis Domine, et lux perpetua Iuceat eis. Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno, e brilhe para elas a luz perpétua!

Origem do dia dos mortos
A oração pelos mortos é tão antiga como a Igre­ja, ou como está já provado, tão antiga como o Antigo Testamento, pois quem não se recorda da oração e dos sacrifícios ordenados por Judas Macabeus e a expressão: é útil e salutar orar pelos mortos? Sempre na Igreja se fizeram preces e foi oferecido o Augus­tíssimo Sacrifício dos Altares pelo alívio dos mortos. Todavia, não existiu sempre um dia especialmente dedicado aos sufrágios e à lembrança piedosa dos fiéis defuntos. A comemoração dos fiéis defuntos de 2 de Novembro vem do tempo de Santo Odilon, célebre aba­de de Cluny de 994 a 1049. Antes deste grande Santo, já muitos mosteiros tinham um dia especialmente consagrado ao sufrágio dos monges falecidos, segun­do se depreende dos martirológios e necrológios. Eram comemorações reservadas apenas ao Mosteiro, em caráter particular. A iniciativa de Santo Odilon con­sistiu em estender a todos os fiéis defuntos os bene­fícios e sufrágios destas comemorações particulares e reservadas só aos monges de determinados mos­teiros.
Segundo o monge Jotsald na obra “De vita et virtutibus sancti Odilonis abbatis”, houve um fato extraordinário que determinou esta comemoração ge­ral. Um peregrino de Rodez, que conhecia muito bem as virtudes e os trabalhos de Santo Odilon, na volta de uma peregrinação a Jerusalém, naufragou e foi dar numa ilha deserta. Lá teve umas visões miste­riosas de grandes incêndios, e ouvia gritos e gemidos de pobres almas do purgatório que diziam: “Somos aliviadas pelas orações e pela caridade do servo de Deus Odilon e pelos monges de Gluny”. O peregrino logo que se viu salvo, procurou o Mosteiro de Cluny e contou o que ouvira. Donde a origem da comemora­ção dos mortos, pois Santo Odilon daí por diante tra­balhou para estendê-la a toda a Igreja. No século XI já era conhecida e praticada em toda Igreja do Oci­dente. Com o tempo foi se tornando mais solene, até que nos últimos anos obteve os ricos tesouros de indulgências e missas de que já falamos.
Na vida de Santo Odilon, tirada das Acta Sanc­torum ordinis Sancti Benediciti, se encontra o decre­to da Instituição da Comemoração dos Mortos. Ei-lo: “Pelo nosso beato Pai Dom Odilom e consentimento e súplica de todos os padres de Cluny, foi decreta­do: “Como nas igrejas de Deus que se erguem em todo o orbe terrestre se celebra no dia das kalendas de Novembro a festa de Todos os Santos, assim en­tre nós se fará, segundo o costume das festas, come­moração de todos os fiéis defuntos que viveram desde o começo do mundo até o fim, de tal maneira: no mesmo dia acima dito, depois do Capítulo farão es­mola de pão e vinho a todos os pobres que aparecerem como é costume fazer na ceia do Senhor. Neste mes­mo dia, depois da assembleia das Vésperas, soarão todos os sinos e se cantarão as Vésperas pelos defun­tos. No dia seguinte, depois de Matinas, tocarão de novo todos os sinos e se fará o ofício pelos defun­tos, etc”. E desde então começou, até ser hoje o que vemos, a solenidade da Comemoração dos fiéis de­funtos.

Resoluções
Façamos o propósito de guardar bem as lições deste dia, gravadas em nossa alma.
A lembrança dos mortos há de ser embalsamada pelo perfume da oração e a caridade do sufrágio. Seja o Dia de Finados o dia da nossa grande dedicação para com os mortos. Ouvir a Santa Missa, receber a Santa Comunhão e visitar o cemitério, se possível. Podemos carinhosamente adornar de flores os túmu­los queridos. Todavia, que estas flores simbolizem a nossa oração e venham depois ou juntas com nossos sufrágios. Flores e lágrimas sentimentais e estéreis, nada aproveitam aos mortos, já o dissemos e repeti­mos. Não se deixe o essencial pelo acessório. O útil pelo supérfluo. Vamos ao cemitério sem vaidades e com espírito de fé. Lá procedamos como verdadeiros cristãos, com todo respeito. Meditemos seriamente em nosso destino eterno. Digamos como São Camilo de Lellis: “Ó, si estes que aqui estão nos túmulos pudessem voltar, como haviam de ser santos e tra­balharem pela sua salvação! Estes já foram e eu tam­bém irei um dia! Mais tarde me visitarão também num cemitério!”.
Estou preparado? A morte virá quando eu menos pensar. Meu Deus! Tende piedade daqueles que tal­vez estejam sofrendo no purgatório por minha causa!
Enfim, quanta reflexão grave e decisiva não po­de nos vir num cemitério!
São Silvestre, abade, se converteu e se santificou à vista do cadáver em corrupção, cadáver de um grande amigo que viu ele num túmulo aberto, em estado lamentável de corrupção. A oração do Santo no Breviário, lembra esta passagem quando assim reza; “Ó clementíssimo Deus, que vos dignastes chamar à solidão o santo abade Silvestre, quando ele meditava piedosamente sobre a vaidade deste mundo, em um túmulo aberto, assim como o ornastes com os méritos de uma vida ilustre, humildemente vos su­plicamos que imitando o seu exemplo, desprezemos os bens terrenos a fim de gozarmos eternamente a vossa companhia”.
É o que precisamos fazer no dia dos mortos: contemplar os túmulos e procurar a solidão de uma meditação grave. Pensarmos em nossa vida futura. Não é mister que se abram os túmulos e presencie­mos, como São Silvestre, o espetáculo horrível da cor­rupção a que havemos de chegar um dia. Sobre os túmulos fechados há muito que meditar, há muita lição que aprender num cemitério! Tomemos a reso­lução, pois, repito, de visitarmos os mortos para apren­dermos a viver. Façamos do dia de finados o dia da nossa grande e generosa caridade para com os fiéis defuntos.

Exemplo
O livreiro de Colônia
Guilherme Freyssen foi um célebre livreiro de Colônia, do qual se contam duas graças extraordiná­rias alcançadas pela devoção às santas almas do pur­gatório. Ele havia narrado estas graças numa car­ta escrita no ano de 1649 ao Revmo. Pe. Tiago de Monfort, da Companhia de Jesus. Eis a carta:
“Meu Padre, eu vos escrevo esta para vos con­tar a dupla cura de minha mulher e de meu filho. Durante os dias feriados em que fechei minha livraria e tipografia, fiquei recolhido em casa e tomei um livro bom e piedoso, para leitura. Eram os originais de uma obra que ia imprimir sobre as almas do purgatório. Estava ocupado nesta leitura, quando me vieram dizer que meu filho estava com os sintomas de uma doença muito grave. A doença progrediu ra­pidamente e a criança estava em perigo sério de vida. Os médicos não deram mais esperanças. Já se pensa­va mesmo nos funerais. Nesta grande aflição e vendo baldados todos os recursos humanos, resolvo fazer um pedido ao Senhor pelas almas do purgatório e fiz uma promessa: distribuiria gratuitamente cem exemplares do livro que tratava do purgatório e recomendava a devoção às santas almas. Uma grande espe­rança encheu meu coração. Entrei logo no quarto do filho e o encontrei muito melhor. No dia seguinte, contra toda expectativa, o menino estava completa­mente curado e restabelecido. Cumpri meu voto. Fiz logo propaganda da obra. Passaram-se três semanas e uma doença grave veio atingir minha mulher. Tre­mia ela por todo corpo e se atirava ao chão, em con­vulsões, até ficar sem sentidos. Chegou a perder o uso da palavra. Empregaram-se todos os meios pos­síveis para salvá-la, mas tudo inutilmente. O confes­sor que a assistia só tinha palavras de consolo. Quan­to a mim, não perdi a esperança. Tinha grande confiança nas benditas almas do purgatório. Voltei à igre­ja e prometi distribuir, desta vez, duzentos exemplares do livro a fim de conquistar muitas almas para a devoção às santas almas. Mal saía da Igreja quando os criados me vieram dar a notícia feliz de que minha mulher estava bem melhor. E assim era. Encontrei minha mulher mais bem disposta, e poucos dias depois estava perfeitamente curada. Fui fiel em dar os livros prometidos e sempre fui muito grato às almas do purgatório.”. (Hautin, Puteus defunctorum Lib. I - C. V. Art. 3.).

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Fonte:
Tenhamos Compaixão das Pobres Almas!
30 meditações e exemplos sobre o Purgatório e as Almas, por Monsenhor Ascânio Brandão
Livro de 1948 - 243 pags, Casa da U.P.C. Pouso Alegre